quarta-feira, abril 29

A Noite Sem Fim

Antes de voltar pra casa consegui sanar meu desespero mental voltando à biblioteca e me certificando que a caixinha de fato havia funcionado como prometia. De quebra, peguei mais um livro.
Um livro da minha longa e eterna 'wishlist'.
Consegui ficar quase feliz quando percebi que, só na última semana, essa coisa de ser sócia de biblioteca havia me feito poupar 70 reais - o que, dada a minha situação financeira atual, não é pouca merda, não.
Quase feliz porque eu entendo que um terço do meu tesão pelos livros novos se deve ao fato de que eles vão ficar fazendo a fina lá minha única estante bombada no futuro para que todos que me visitem vejam o quanto eu sou erudita e como eu gosto de ler - uma mania de gente tarada mesmo, porque eu poderia ficar passar bem uns dois, três anos sem comprar nenhum livro se me dispusesse a ler todos os livros que a minha mãe já comprou na vida e que recheiam as paredes da casa dela ou à fileira de livros que eu ainda não li que estão dentro da minha própria casa; o que leva a outra mania de gente tarada que é gostar do cheiro, da cor, da figura do livro novo; a possessão do livro novo. A ausência deles na minha coleção será algo com a qual eu vou ter que conviver pacificamente sem a ajuda de um analista.
O importante era me sentir uma pessoa supra econômica e feliz por ter poupado os tais 70 reais e ainda ter prazer nisso.
Assim, logo que cheguei em casa, abstraí totalmente do compromisso de assistir a dois seriados na tv, e me atraquei com livro - outro exemplar de literatura mulherzinha - até quando o corpo aguentou e eu resolvi dormir o sono das pessoas abatidas pela gripe "filina"; mal cabendo em mim de antecipação ao pensar que faltavam apenas dois dias para eu ter de volta o meu amado, idolatrado, salve, salve edredom cheiroso, limpinho e quentinho (ele estava além do sujo e eu sem grana para mandar lavar, dormindo coberta por 3 lençóis e eu odeio lençol).
Quando meu corpo parou de latejar e eu comecei a cair no sono risadas e tiros de metralhadora me acordaram de supetão. Aparentemente, os mesmos vizinhos que deram uma festinha na terça-feira da semana passada haviam resolvido dar outra festinha e os vizinhos de cima resolveram assistir algo na tv que seria responsável pela saraivada de tiros.
Eu não sou uma vizinha que reclama. Detesto essse papel. Já existem 3 outras vizinhas que se prestam a ele e eu sempre me obrigo a pensar que ainda sou jovem e que virá o dia em que eu vou resolver dar uma festinha eu mesma e fazer barulho eu mesma - a diferença é que nesta terça, nesta noite, eu estava doente, doída e tinha que acordar às 5 e meia da manhã dia seguinte.
Ainda assim me resignei, peguei o livro de novo, fui fumar na varanda, futuquei as cutículas (Meu Reino Por Uma Manicure!) e, quando diminuiu a emoção, voltei pra cama.
Mais uma vez, num momento onde eu estava até babando no colchão, gritos, urros irados me tiraram do estado de torpor. Um dos casais do prédio havia resolvido ter uma discussão acalorada, com direito a palavras de baixo calão, portas batendo...
Na Idade da Pedra eu já fui parte de um casal também, então, mais uma vez me resignei.
Olívia dormia um sono pesado e solto e eu tive muita inveja dela.
Peguei o livro de novo, tomei uma aspirina porque o alto das minhas costas parecia ter sido torcido tal e qual a gente faz com tiras de plástico bolha e resolvi tomar um banho bem quente enquanto o casal resolvia acalmar os ânimos.
Dentro da banheira tive tempo de descobrir mais um aspecto importante da minha relação com os espécimes do sexo oposto - a análise havia começado à tarde, durante um papo com um amigo, a catarse dentro d'água seria apenas um encerramento para uma questão que nunca se encerra; mas que eu compreendo cada vez mais.
Na saída, limpa, quentinha, de repente encontrei dois caracóis na minha janela. Me toquei que não tenho a menor capacidade de distinguir quem são eles realmente - Sidney, Nancy, Maria - e pude ver que nenhum dos dois estava sem concha, o que me levou a perceber que eu não tenho a menor idéia de quantos deles existem na jardineira (ou eu tive um delírio) e começar a considerar a possibilidade de exterminar todos eles em breve.
Voltei pra cama.
Com o advento da solteirisse, meu colchão começou a ganhar forma, afundar, apenas de um lado da cama. Tem seu lado confortável, mas também tem seu lado deprimente, então lá fui eu mudar de lado para tentar moldar os dois lados - ou o meio - ao formato do meu corpinho de sereia. E isso também não é fácil. Nem confortável. Mas, uns vinte minutos e dez viradas variadas depois, caí no sono...
...Para ser acordada novamente!
Dessa vez meu algoz era um caminhão de lixo, entulho, a porra que for porque da minha casa não se enxerga a rua - mas se ouve.
O caminhão manobrava, rugia, um cabra do lado de fora gritava o que eu imaginava serem comandos de manobra. Quando eu achava que ia acabar, lá vinha o rugido furioso de novo.
Levantei.
Peguei o livro de novo.
Abri a janela.
Acendi um incenso.
Levei o cigarro pro quarto - foda-se.
Peguei o resto do sorvete - foda-se.
Sentei na minha poltrona e, entre uma colherada de sorvete e um parágrafo, tive tempo de pensar que a razão deu passar o mês de dieta e não emagrecer nem cem gramas estava ali, naquele pote de sorvete, na minha noite mal dormida, na minha gripe, nos meus problemas hidráulicos correntes...
Cheguei à conclusão de que faço dieta o mês inteiro para poder ficar menstruada feliz, passar pela TPM feliz e ficar de mau humor feliz, podendo me entupir de chocolate até que ele saia pelos ouvidos e eu possa morrer de culpa no dia seguinte quando os culotes resolverem saltar para os lados ameaçadoramente numa existência nada feliz em termos gerais - o que me levou à conclusão de que todo aquele papo que eu ouvia de que depois dos 30 fica muito mais difícil emagrecer não só é verdade, como é muito cruel.
Mas fodam-se os culotes. Eu não ia conseguir acordar na hora no dia seguinte, não estava me sentindo bem, minha vida amorosa, além de inexistente, é tão errada que deveria ser usada como exemplo de tudo que dá errado, estou tão dura e tão de saco cheio de estar dura que nem rezar para ganhar na mega sena eu rezo mais, minha monografia foi por água abaixo até segunda ordem, e mais, muito mais... Então fodam-se os culotes.
De repente, o silêncio.
Minha vontade, vontade mesmo, id, era enfiar a cara na janela e gritar bem alto:
- Agora acabou? Agora eu POSSO dormir? Ou alguém aí vai dançar sapateado?
Mas eu não gritei.
Fechei a janela.
Voltei pra cama.
O alto da coluna já doía de novo.
Resolvi atrasar o relógio em meia hora, já que o atraso era inevitável. Banho pra quê, não é mesmo?
Achar a posição foi mais fácil dessa vez.
Acabou a noite.
E acordei atrasada de novo.

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