sexta-feira, julho 13

A Noite Em Que Eu Estripei Dostoiévski

A fim de corrigir alguma, apenas uma, mais uma; uma das minhas falhas de caráter aí debaixo; lá fui eu. Uma vergonha, repreensível último nível que a pessoa tenha em casa a coleção de obras completas do russo aí do título, que saiba que o nome do cabra é Fiodor, que saiba algo de sua biografia e nunca tenha se dignado a gastar algo do seu tempo com a leitura de algum livro dele, né? Após debater com meu único amigo (isso é outra coisa; empombei, inventei, preciso ter certeza ainda, mas empombei que só tenho dois amigos "sobrando" na vida) e estee ter me dito que também nunca havia lido nada do cara, meu lado competitivo, burro, obsessivo tomou à frente e resolveu corrigir a falha.
Achei que ir direto aos "Irmãos Karamazov" também já era demais - são 3 volumes - então fui à estante e "Crime e Castigo".
Vejam bem, não sei se sou eu que estou ficando cadaa vez mais pancada das idéias, mas o que se seguiu, para mim foi emblemático.
O livro - a edição em questão é velha. A capa traz um desenho feito à mão - da época em que se desenhavam capas de livro à mão para impressão; a lombada ameaçava despencar, amarelado, com uma camadaa fina de poeira que nem é camadaa de peira de falta de limpeza, é de idade do livro. Fui ler a introdução e tomei um susto: as páginas do livro todo estava grudadas em grupos de 4. Olhei mais um pouco, pensando como aquilo seria possível. Olhei a data de publicação do volume: 1951. Um livro de 56 anos e virgem!
Corri para a sala desolada...

- Mãe, eu não vou poder ler isso!!!
(Cara de "Renata enlouqueceu".)
- Porquê?!?
- Porque as páginas estão gudadas, olha só! - Disse a monga aqui estendendo o livro.
(Olhar de diversão.)
- Nãããããããooooooo, minha filha, é assim mesmo... Naquela éepoca, os livros eram editados assim, a gente abria as páginas com faquinha... Abre lá!
- Mas, mãe... Eu não posso abrir o livro...!
- Pode, sim, abre lá!

Fui eu, me sentindo mais burra que burra e prestes a cometer o assassinato dos assassinatos para a cozinha. Peguei a faquinha. Enquanto ia rasgando as páginas, com aquele som "créc,créc,créc..." servindo de trilha sonora só me lembrava de outro livro que li há pouco; o tal livro falava da paixão de certas pessoas que eu nem sabia que existiam por edições raras, o que elas faziam para conseguir pôr as mãos nelas, quanto pagavam... Créc, créc,créc... E eu ali, estripando uma edição virrgem de 56 anos de Dostiévski única e exclusivamente para prazer pessoal e menos 2 anos de análise... Créc, créc,créc... Imagina se alguém, um dos meus amigos livreiros me visse realizando essa operação... Créc,créc,créc...Um colecionador... Créc, créc, créc... Suei frio. Cheguei a derramar uma ou duas lágrimas de pesar, mas não consegui parar. Se parasse, não ia ler o livro nunca mais. A dona do livro havia me dado salvo-conduto; apesar da minha consciência.

Saí da cozinha mais arqueada do que entrei.
Mais deprimida do que quando entrei.

- Estou me sentindo uma assassina.
- Porquê, minha filha...?
- Eu estripei Dostoiévski...
- Ah, mas ele ia gostar que você lesse!!! (Pusta sorriso satisfeito.)
- Uma edição tão antiga... (Quase chorando de novo.)
- Ele ia gostar que você lesse, filhinha, fica assim, não... (Ainda o sorriso.)
- Eu estripei Dostoiévski... Vou dormir. Boa noite.

Deitei na cama e fiquei pensando se não era uma coincidência muito da bizarra ter tido salvo-conduto da dona da relíquia que eu tinha em mãos para cometer um assassinato justificado a fim de ler justo a história de um assassinato justificado. A dor do feito persiste, minha consciência - uma coisa! - mas fiz do mesmo jeito.
Está feito.
Estripei.
Me resta lê-lo.
Sentir-me mais leve ao corrigir uma falha de caráter tendo cometido outra.

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