quinta-feira, novembro 4

Senhora

Não consigo me lembrar.
Faz alguns dias, tento me lembrar em que momento específico eu me transformei numa "senhora".
A lembrança mais antiga vem de um festival de rock, onde eu já tinha lá meus 27, 28 e um rapazinho de seus 17,18 vendia os refrigerantes superfaturados.
Mas não sei se foi a primeira vez.
Só o que eu sei é que hoje, eu sou uma "senhora".
Ontem, andando na rua, numa caminhada de pouco mais de dez minutos, a alcunha surgiu duas vezes ao longo do caminho.
Ela vem de um porteiro, de um transeunte desconhecido, de uma mãe com uma criança, da atendente do telemarketing, da caixa do mercado, do jornaleiro...
Vem sem permissão nenhuma, uma vez que a "senhora" aqui passa a maior parte de seu tempo não sentindo a idade que já tem.
A "senhora" entende que é um sinal de educação e respeito - segundo algumas correntes bastante deturpado, mas este não é o assunto aqui - e fica imaginando se a nova alcunha vem junto com o pacote de responsabilidades sociais que ela tem que cumprir e seguir todos os dias, já há algum tempo e até morrer ou ficar senil - o que vier primeiro.
A "senhora" entende, mas não lembra; a alcunha agora faz parte do que ela é, da pessoa dela.
Andando nas ruas todos os dias, me lembro de um livro que minha filha leu este ano, que conta a história de uma menina que sai para passear com a tia. A tia é distraída e no meio do caminho, ao invés de dar a mão à menina, dá a mão para um macaco de realejo durante o passeio, recuperando a menina ao final e sem nem perceber que havia feito alguma troca.
Lembro do livro porque quando andamos na rua, nossas mãos se pegam automaticamente; mesmo não havendo rua a atravessar, mesmo não havendo obstáculo, nada. Elas simplesmente vão se pegando e se dando e se namorando ao longo dos nossos caminhos, sejam eles quais forem.
Em muitas dessas vezes, nós sequer nos olhamos ou estamos conversando.
São as mãos. Sozinhas. Que se pegam.
E daí que eu imagino o que aconteceria se um dia minha mão pegasse uma outra mão que não a dela. Se ela pegasse outra mão que não a minha.
O medo dessa situação é o tipo de coisa que me transforma em uma "senhora".
Garotinhas não precisam se preocupar com mãos enamoradas - ou a perda delas.
À noite, todos os dias, lembro da prateleira branca da sala, onde enfileiro metodicamente, de acordo com a data de vencimento, cada uma das 8 contas que tenho que pagar mensalmente (outras 4 não me mandam boletos) e faço contas. Contas frenéticas e furiosas.
Que não deixam a minha cabeça descansar ao longo de todo o dia seguinte, e a noite, e o dia...
Garotinhas não precisam se preocupar com contas a pagar.
Semanas sim, semanas não, dias sim, dias não, vem aquela angústia no peito quando penso em tudo que preciso estudar, quando faço planos acadêmicos. Hora é angústia, hora é fome. Mas os planos não param, não descansam.
A vontade que eu tenho agora de estudar incessantemente só dá em "senhoras".
Que dizer do coração - que quer um outro tipo de amor e já não tem paciência para o que antes era satisfatório - do corpo - que já não tem a mesma elasticidade e resistência aos prazeres mundanos e alcóolicos da vida - dos desejos - tão diferentes!
Coisas de "senhora".
E na maior parte do tempo é realmente assim.
Na maior parte dos dias, minha casa é meu programa predileto e beber uma cerveja em frente à tv um prazer imenso.
Mas tem dias...
Dias em que eu me pergunto...
Dias em que não me sinto como uma "senhora".
Não sinto nada disso e meus anos diminuem pela metade.
Em que quero sair, dançar, beijar, rir, perder a consciência e a conseqüência.
Dias em que eu tento me lembrar e não consigo, em como fui me transformar nesta jovem senhora.

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